Os Haussás no Brasil

06/06/2015 12:45

 

Os negros africanos chegaram ao Brasil em 1517, sendo os primeiros africanos embarcados na América pelos portugueses levados para diversas regiões. Alguns desses povos vindos para o Brasil foram islamizados pelos árabes, como os haussás, vindos do Sudão Central, atual norte da Nigéria. Estes chegaram no Brasil no final do século XVIII e início do XIX. A maioria dos haussás foi levada para a Bahia e um pequeno grupo para Pernambuco.

            Com a vinda dos haussás para o Brasil, os cultos islâmicos receberam outros nomes como: religião dos alufás, culto mussurumim, muçulmi ou malê. Roger Bastide (1995, pag. 199), afirma que o nome malê dado aos muçulmanos no Brasil, é uma curruptela de Mali, nome de um dos reinos muçulmanos do vale do Níger. Ele também afirma que o islamismo introduzido no Brasil vem do povo haussá.

            Destes muçulmanos é que se criou a mítica do negro altivo, insolente, insubmisso e revoltoso. Eles seguiam as normas do Alcorão e ritos praticados no Sudão Central que se mantiveram na Bahia como: oração cinco vezes por dia; o jejum do mês do Ramadã que terminava com uma grande festa; preservavam a hierarquia; circuncisão de crianças; se vestiam caracteristicamente como muçulmanos com suas túnicas brancas e deixavam as barbas compridas. As crenças muçulmanas também eram visíveis nos malês: os dijins, que são os espíritos malignos; a adoração de um único Deus, Allah; amuletos para proteção. Alguns desses rituais foram sincretizados com outros povos africanos no Brasil.

            A inconformidade com a escravidão no Brasil fez com que os haussás suscitassem várias revoltas. A maior delas ocorreu na noite do dia 24 e 25 de janeiro de 1835 na Bahia, com mil e quinhentos negros. Estes escravos não eram tão comuns, muitos pesquisadores reconheceram que os haussás eram homens letrados e mestres do islamismo que influenciaram na execução da revolta. Muitos eram discípulos de  Belchior  da  Silva  Cunha, um nagô emancipado  que  era  mestre  no  islamismo  que  usava  sua  casa  para  ensinar  os escravos. Ele tinha um mestre maior que era um certo Luiz Sanin. Esses mestres convocaram seus alunos a fazerem guerra contra os brancos. José Cairus no seu artigo sobre a diáspora africana (2003, pág. 15), afirma que a revolta fora marcada por estes mestres islâmicos.

            A obra de José Reis “Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835”, é fundamental para entender as motivações da revolta que está permeada da forte vida cultural e religiosa. José Reis é um especialista sobre escravidão na Bahia e possui muitos artigos e textos confiáveis sobre a cultura malê. Ele utiliza vasto material tanto bibliográfico quanto de fontes impressas e iconográficas.

            Os malês possuíam sua identidade étnica. Suas revoltas foram sedimentadas pela sua base cultural. O autor chama atenção para o apoio das revoltas serem fomentadas tanto por escravos livres como cativos. Contudo, a questão étnica os moveu como desejo de mantê-la viva e libertar-se da outra cultura dominante.

            A identidade dos malês é tão forte na Bahia, que a maioria dos convertidos ao islamismo em Salvador nos dias atuais, se identificam com esta cultura ou outorgam para si descendência étnica malê.

            Houve várias rebeliões escravas dos malês na Bahia e também de outros grupos de escravos em vários estados. A rebelião dos malês de 1835, é o ápice da não aceitação do regime político escravista no Brasil colonial em transição para o Império, e principalmente por possuírem uma identidade religiosa trazida das suas terras africanas no qual o islamismo era majoritário e ainda é no Norte da África.

            Conforme a descrição de José Reis, a rebelião consistia em mudanças completas na sociedade baiana e até mesmo em Pernambuco. O plano implicava em tomar a cidade, instalar seus líderes tanto no cargo de bispo como de governador, eliminar a população branca por envenenamento, destruir seus sobrados, recolher as imagens das igrejas e queimá-las em praça pública. Depois iriam para Pernambuco libertar os escravos haussás e juntos formariam um reino.

            José Reis (2003, p.73) é contundente em afirmar que: “há muitas evidências do papel da religião nessa revolta”. Uma dessas evidências foi a escolha da data para a rebelião.

            O autor fez a conversão do dia 25 de janeiro de 1835 da era de Cristo para chegar ao calendário muçulmano da época. Através dos documentos de devassa, que são contundentes para ratificar o calendário muçulmano, chegou-se a conclusão que a data escolhida para a revolta dos malês era do mês do Ramadã, em que os muçulmanos realizam 30 dias de jejum para relembrar o mês que o profeta Mohammed recebeu as primeiras revelações no ano 610.

            O mês do Ramadã é acompanhado de alguns momentos místicos nos últimos dias ímpares. Este momento é chamado de Laylat-al-Qadr, Noite do Poder. Nestes dias os muçulmanos mais místicos buscam a mesma presença divina que ocorrera com o profeta. Em cada cultura islâmica este dia é comemorado com manifestações diversas.

            Apesar da comprovação de ter acontecido o levante no mês do Ramadã, José Reis não ratifica que tal revolta tenha conotações da jihad.        

Outra obra de fundamental importância para compreender a Revolta do Malês no que tange a motivação para rebelião, é “Os Africanos no Brasil”, de Raimundo Nina Rodrigues, publicada em 1932. A relevância desta historiografia permitiu que o livro fosse reeditado em 2008 pela editora Madras.

            Não há concordância geral entre os autores no que diz respeito aos malês em terem executado uma jihad. Nina Rodrigues é contundente em afirmar que a rebelião é intrinsecamente religiosa. Ele apresenta sua análise de forma a concluir que o islã estava presente em toda esfera cultural e foi o grande motivador que provocou a rebelião. Firmado nesta posição está a jihad que corroborou com os ataques na noite de 24 e 25 de janeiro de 1835. Os levantes causados na Bahia eram dominados pelos povos do Sudão, não se aplicando portanto, aos bantos, auzasee e schéschés, mas sim aos haussás.

            Os senhores brancos desconsideravam a sensatez dos haussás, mesmo que os batizassem. Entre si eles mantinham suas crenças e conversas no seu próprio idioma que os brancos não conheciam. O comércio do Brasil com a Costa da África ajudaram os haussás a saberem dos sucessos guerreiros e religiosos que ocorriam por lá. Estes fatos estimularam os haussás a planejarem as rebeliões.

            Mestres islâmicos vieram para o Brasil e ensinaram a ler em árabe os livros do Alcorão, que eram importados. O relatório do chefe de polícia, Francisco Gonçalves Martins, afirma que sob circunstâncias religiosas foi tramada a revolta de 1835:

 

[...] podendo asseverar a V.Exª. que a insurreição estava tramada de muito tempo, com um segredo inviolável e debaixo de um plano superior ao que devíamos esperar de sua brutalidade e ignorância. Em geral vão quase todos sabendo ler e escrever em caracteres desconhecidos que se assemelham ao árabe, usado entre os ussás, que figuram ter hoje combinado com os nagôs. Existem mestres que davam lições e tratavam de organizar a insurreição na qual entravam muitos forros africanos e até ricos. Têm sido encontrados muitos livros, alguns dos quais dizem serem preceitos religiosos tirados de mistura de seitas, principalmente do Alcorão. O certo é que a religião tinha parte na sublevação e os chefes faziam persuadir aos miseráveis que certos papéis os livrariam da morte.

  

            Outras obras podem ser encontradas a respeito dos escravos muçulmanos trazidos para o Brasil. Algumas foram reeditadas, como a de João do Rio “As Religiões do Rio” de 1932.

            Após a derrota do levante, as casas dos escravos malês foi confiscada. Encontraram livros escritos em árabe ou persa, rosários muçulmanos (masbaha), papéis em árabe e um dos mais conhecidos objetos que foi o livrinho malê encontrado no pescoço de um preso. As revoltas não alcançaram seus objetivos e os negros não se tornaram livres para propagar a fé islâmica. Sentenciados conforme código penal da época do Império, muitos escravos foram deportados, outros receberam sentenças de morte, outros receberam mais de 500 açoites e outros foram presos.

       

Obras consultadas:

 

BASTIDE, Roger. Les Amérique Noires: les civilisations africaines dans le nouveau monde. Paris: Payot, 1967.

_____. Les Religions Africaines au Brésil, contribuition à une sociologie des interpénétrations de civilisation. Paris: Imprimerie des Presses Universitaries de France, 1995.

CAIRUS, José Antônio Teófilo. Jihad, Cativeiro e Redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão central e Bahia (1835). Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002

MARTINS, Francisco Gonçalves. “Relatório”. In: BRAZIL, Etienne Ignace. Os Malês. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 72, nº 2 (1909): 115-23.

REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

RODRIGUES, Raimundo Nina. Os Africanos no Brasil. Brasília: UNB, 1976.